TRECHOS

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[Israel Jorge] Você arriscaria apontar as principais diferenças entre portuguesas e brasileiras?
[João Pereira Coutinho] As portuguesas são falsas pudicas e as brasileiras são falsas coquetes.
[IJ] E a reforma ortográfica? Mudança de 0,5% das palavras, no Brasil, e de 1,6% em Portugal... Deveria ser o contrário?
[JPC] Por conselho médico, não me posso pronunciar sobre o “acordo ortográfico”. Estou em plena medicação.
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Enfim, o fato é que meu pensamento flui melhor com a tinta, ou com o cursor da tela. As ideias vão se tornando mais claras quando escrevo, novas ideias também surgem e aquilo que inicialmente imaginei, de forma anuviada, aparece ordenadamente no papel. Uma surpresa. Um prazer. Segundo José Saramago, a coisa mais interessante que há no ofício de escrever.
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[Israel Jorge] Olá, Daniel. Como vai?
[Daniel Piza] Melhor do que supus um dia que estaria nesta idade. Pior do que poderia estar num país onde os descalabros do atraso continuam a se impor, onde o trabalho intelectual franco vale tão pouco.
[IJ] Gostei do seu último aforismo, sobre sonhos. Estou ansioso, aliás, para ler a reunião de todos os “Aforismos sem Juízo”.
[DP] O livro reúne mais de 500 aforismos. Faz 15 anos que os escrevo. Um escritor nunca sabe qual parte de sua obra vai ser escolhida por uma geração seguinte, e acho que alguns aforismos podem “ficar”. Mas, como disse Woody Allen, quando trabalho não penso na posteridade - ela não fez nada por mim.
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"Há pessoas alegres que sabem ser tristes. Têm a tristeza com uma alegria escondida, como se traz um berlinde no bolso.” As palavras são de Manuel S. Fonseca, autor do já extinto “É Tudo Gente Morta” (www.etudogentemorta.com), e juntamente com a música Sorrow (banda The National) foram oferecidas ao colega de blog Vasco Grilo. Tomei emprestado o presente. A descrição é simplesmente perfeita para alguns traços que valorizo, e a música complementa de maneira precisa: “Sorrow found me when I was young.” Não sei o que seria de mim (as felicidades a brotar do senso comum) se não fosse o afago maduro e adocicado da melancolia. Lindo post, lindos presentes. Invejo muito os mortos de lá.
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[Israel Jorge] Agora sim, futebol. Você chegou a ler o livro de Rogério Ceni, “Maioridade Penal”?
[José Roberto Torero] Não. Mas acho que ele deveria se chamar “Maioral no penal”, porque ele bate pênaltis muito bem.                                               
[IJ] Eu li e recomendo. Aos são-paulinos, pela possibilidade de reviver lances e conquistas por ângulos inusitados e com emoção inesperada. Aos demais, para que compreendam Rogério (competitivo ao extremo, não arrogante) e passem a admirá-lo como marco que é da história do futebol mundial. A propósito, como é que você avalia a carreira dele?
[JRT] Avalio em muitos milhões de reais.
[IJ] Seria muito exagero afirmar que, na prática, ele já foi o melhor jogador do mundo? Uma final na “Bola de Ouro” até veio em 2007, mas há sempre a barreira continental e o ano era mesmo de Kaká. Em 2005, por outro lado...
[JRT] Sim, seria exagero. Coisa de são-paulino.
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Como bom brasileiro, volto a escrever na semana posterior ao Carnaval. O Brasil sempre recomeça após o Carnaval. Gosto do feriado, é verdade, mas a festa me envergonha. A presunção de luxo e glamour dos desfiles é completamente patética, e só mesmo o mau gosto valoriza aquelas bijuterias gigantes. São carros de sucata reluzente a balançar como brinquedos claudicantes, são sorrisos de satisfação alienada e orgulho ignorante. Não há sequer resquícios de pureza cultural. Tudo é pulverizado e misturado, e os “pratos” regionais se transformam em lavagem para a plateia suína.
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[Israel Jorge] “A verdade científica é uma ‘verdade fiduciária’ baseada na determinação da credibilidade dos cientistas e da genuinidade de suas motivações. Não há outras garantias mais objectivas do que esta fidúcia”. Em outras palavras, para tornar mais claras as de Boaventura, as pessoas acreditam porque viram no Discovery Channel – atire a primeira pedra o leitor que realmente compreende o surgimento repentino de procariontes no caldo Knorr primordial sabor coacervados. E você, de onde vem a sua confiança?
[Hélio Schwartsman] Não há confiança. É apenas uma descrição mais plausível para a origem da vida do que um Papai do Céu criando tudo “ex nihilo”.
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Se a simetria é o princípio clássico da beleza convencional, a desordem parece ser a matéria-prima de uma beleza diferente, ímpar, que traz no bojo o conceito de superação e o simbolismo cru da realidade. Se a ideia de perfeição é o pressuposto original da satisfação, a deformidade parece burilar reações maduras e mais profundas de apreciação da vida. Tratar-se-ia de um confronto, podemos dizer, entre a arte divina e a arte independente do homem. O homem “abandonado” em sua própria decadência, que procura desvencilhar-se da passividade e que ousa produzir encanto na dor. A dissonância na música, os rabiscos na tela, o móvel envelhecido. O sabor do queijo podre e o jeans levemente rasgado. Em especial, a linda melancolia de um bom romance francês. Parece mesmo haver um charme fascinante no lado underground dos ideais. E a natureza, com o equilíbrio sangrento da cadeia alimentar, aparenta cumplicidade. É esse, afinal, o entendimento correto? A infelicidade habitual é realmente condição indispensável das pérolas? Não haveria sequer uma mínima possibilidade de pérolas sem dor, de pérolas sem areia?
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[Israel Jorge] Você descreve de forma rara o amor e a mulher. Explique-me, por favor, por que é que elas não prescindem daquela ambiguidade inconscientemente intencional... Como bem dizia Drummond, “o olhar da mulher pode revelar tudo que ela esconde, se o interpretarmos ao contrário.”
[Affonso Romano de Sant’Anna] Tenho um poema, que é um diálogo com um poema de Manuel Bandeira, que começa com um verso dele e por isso é intitulado ambiguamente de “Bandeira, talvez”. No final diz o seguinte:
“Na verdade, desde os tempos dos sumérios / me extasio / ante o aliciante mistério das mulheres. / Por isso posso contemplá-las toda a vida / ou seis mil anos / - sem fadiga. / A beleza é um grito / é um fruto / a beleza é um vício / é um mergulho vivo / no infinito.”
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Mais uma multa. Mais indignação. Concordo que ultrapassar a velocidade máxima permitida (tentação sempre presente nas longas avenidas de Brasília) é um risco à integridade de outras pessoas, merecendo punição. Mas não usar o cinto de segurança? Qual é o problema, se o risco é exclusivamente meu? Faltavam apenas algumas quadras até o apartamento quando o policial, com sorriso orgástico, anotou a placa. É a lei, é a lei. E é bem provável, se o raciocínio se multiplicar, que novos cuidados sejam impostos. Além da distribuição de preservativos no Carnaval, por exemplo, imaginem fiscais de cama em cama para verificação do uso efetivo. Nos restaurantes, por sua vez, pratos gordurosos seriam negados aos safenados, e nas confeitarias só seria possível entrar com um exame decente de glicemia. Ovos de chocolate para as crianças, na Páscoa? Não, também não. Como é que o Estado poderia, afinal, permitir um alimento que entope as veias e cria futuros obesos diabéticos?
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[Israel Jorge] “Lula observava em Dilma/ Seu espírito varonil/ E a nomeou ministra/ Chefe da Casa Civil/ Hoje Dilma é presidente/ Pra governar o Brasil.” Esse espírito realmente “varonil” de Dilma, que talvez indique sua preferência sexual, pode ser considerado como um dos impulsos para o atual movimento gay?
[Zé Antônio] Se Dilma tem uma filha/ Não foi por telepatia/ Certamente ela causou/ Com prazer e com orgia/ De mulher Dilma Rousseff/ É que nunca emprenharia.
[IJ] “Se o fato de um homem/ Com outro se acasalar/ Companheiro, meu amigo/ Você pode não aprovar/ Porém, como cidadão/ Você deve os respeitar.” Parece-me que a coisa é simples assim, mas a tendência é de desrespeito aos que não aprovam. Não está havendo um exagero do orgulho homossexual?
[ZA] Todo mundo tem direito/ Ser normal ou anormal/ Homem querer ser mulher/ Orgulho gay é legal/ E mulher querer ser homem/ No ato sexual.
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As coisas são muito mais complexas do que eles querem imaginar. O poder exercido pelas classes dominantes não é simplesmente aplicado como obrigação às camadas subalternas. Na verdade, ele passa por elas e através delas, ou seja, “essas relações aprofundam-se dentro da sociedade” e “não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes” – já dizia o próprio Michel Foucault, em sua teoria sobre a “microfísica do poder”. Simplifique-se: não adianta querer empunhar a espada do interesse social para atacar o poderoso monstro capitalista, como se houvesse macroestruturas de dominação a serem derrotadas. O segredo está justamente na natureza de cada ser humano, individualmente. Somos egoístas e sedentos de liberdade, sem exceção. Sendo assim, a única via possível para a promoção social é a que passa pelo próprio seio do capitalismo. Se você topar por aí com um crítico “raro e perspicaz” da “grande conspiração política mantenedora do status quo”, seja indulgente. O orgulho e a noção presunçosa de detenção da verdade são típicos dos adolescentes intelectuais. Eles são diferentes, mesmo, e tentam sempre estar em evidência para converter os “desavisados e destituídos de sagacidade”. São muito chatos, sejamos sinceros. Mas a maturidade chega, ainda que tardia. Tudo passa...